Originally posted 2013-03-29 14:28:12.
Já a memória me falha para, com certeza, afiançar em que ano, ou no aniversário de quem, literalmente regado a preceito, como era hábito e questão de honra, sobreveio a estranha batalha de entremeada versus entrecosto. Aliás, a esta distância, é até difícil de entender como e porquê, carnes da mesma natureza, suína, se embrenharam numa terrível e odiosa batalha “campal”, no interior de uma pacata habitação nortenha.
Tratava-se, disso estou certo, do aniversário de um mortal amigo ou familiar de um. Naturalmente, tudo se passou à noite, na penumbra, à parca luz de um ou dois candeeiros a petróleo. O corrupio diurno, além da habitual romaria pelas tascas, tabernas, cafés, snack-bares, adegas, públicas e privadas, tinha sido recheado de deslocações a outros estabelecimentos, inclusivamente, e o mais importante, ao do chicheiro com cuja filha, se se recordam, “O” havia de fugir. Mas isso foi mais tarde (“guardado está o bocado para quem o há-de comer”). Das tascas e “capelas” semelhantes, chegaram os mantimentos de teor alcoólico: vinho tinto (branco não é vinho), cerjeva (muita), champanhe para terminar em ébria apoteose e Português Suave sem filtro. Sim, algumas cigarrilhas, mas a abastança não chegava ao charuto, muito menos cubano, aliás, até desconhecidos, ou mal vistos, não sei. Nem sei se mal vistos ou desconhecidos eram os charutos ou mesmo os cubanos. Fica a incógnita. O tempo e o álcool tudo apagam. É claro que também havia pão para acompanhar a suinísse. Pensando bem acabou tudo por ser uma desnecessária suinísse.
Pelo caír da tarde, fomos chegando à casa desabitada, mas em óptimas condições, da mãe do aniversariante (agora que escrevo, creio ter sido o “P”): soalho limpo, apenas marcas do tempo a manchar o pinho claro, cortinados no lugar. Apenas o mobiliário era escasso, facto natural em habitação sem gente. Pouco a pouco, forem sendo ajeitadas nos lugares que alguém entendeu óptimos, os mantimentos para a noite de borga: grades de cerjeva junto à janela da cozinha, garrafões de vinho ao lado, pão em cima da mesa destoalhada e a entremeada e o entrecosto junto ao grelhador a carvão. A ideia de cozinhar as carnes num grelhador com as características deste, não foi inicialmente bem aceite pelo “P”: o fumo e os cheiros emanados das lides culinárias não auguravam nada de bom. “Ides foder isto tudo, caralho!” Qual quê, “achas?” Que se punham ali umas “coisas” a tapar e tal e pronto. “Assim sendo…”. “Pois!”
O “F”, designado “Chef” para aquela noite, iniciou o tempero das carnes do bácoro, que havia sido morto pelo próprio chicheiro no dia anterior, homem com experiência na arte de dominar a lâmina, enquanto todos conversávamos em torno do grelhador, cada um com a sua ração de álcool. O tempero incluía, salsa, sal e vinho.
A noite foi sorrateiramente entrando sem pedir licença e os efeitos do álcool começaram a fazer-se sentir. Por isso e muito mais, surgiu uma violenta discussão entre o “O” e o “C” que, por entre as risadas e português vernáculo dos convivas, havia de amainar apenas quando o “O” virou costas desolado com a falta de apoio dos restantes, refugiando-se numa outra assoalhada da casa. Quis o destino que junto à lareira estivesse uma embalagem de um insecticida qualquer, do género Mafu, e que o “C” lhe deitasse a mão para, irado, temperar uma ou duas fatias de entremeada destinadas ao “O”. Os ânimos haviam de acalmar. No entanto, a entremeada já o “O” a tinha ingerido com ar de satisfação! Desde essa altura deixei de acreditar em pleno nas medidas de precaução anunciadas nas embalagens de insecticidas e a compreender melhor a sua falta de eficácia. “O” é hoje um empresário a quem o Mafu, ou semelhante, acabou por trazer sucesso, tendo em conta que a distribuição destes produtos é parte importante da sua actividade.
A noite ia longa e viviam-se tempos de abastança.
Por brincadeira, ou não, alguém vazou uma garrafa de espumante na cabeça de um dos comensais. No Inverno não parece agradável. Mas foi. Foi de tal ordem que, além de se iniciar logo ali uma rega mútua com os líquidos disponíveis, cerjeva e espumante (ninguém ousou o vinho, devido às nódoas), iniciou-se também uma da batalhas que só não ficaram nos anais do país porque já éramos Portugal independente, mas ficou, por certo, na memória do aniversariante e sua progenitora, proprietária da habitação: as sobras de entremeada e entrecosto iniciaram voos rápidos de um lado para o outro, algumas atingindo os alvos outras não, mas ambas logo levantadas do chão para iniciar novo ataque ou contra-ataque. Enquanto inteiro nunca o porco teria imaginado que poderia voar (devia ter acreditado, porque penso que na altura, já os porcos que andam de bicicleta tinham sido avistados), mas o fato é que depois de morto voou e muito. O soalho foi-se rapidamente ressentindo das investidas de cada um dos presentes que corriam pela casa fora com pedaços de porco na mão, enquanto pisavam outros já totalmente inoperacionais para futuros ataques. “P” deitava as mãos à cabeça e ordenava cessar-fogo: “Quietos, caralho! A minha mão mata-me!” Sabemos hoje que não foi isso que aconteceu. A guerra acabou, mas ninguém reclamou os despojos.
No dia seguinte, “P” contactou alguns de nós, no sentido de ajudar a proceder à limpeza do palco das hostilidades. Claro que todos ignoravam de que raio estava ele a falar, até porque a bebedeira não permitiu assimilar toda a informação processada na noite anterior.
Para evitar situações desta natureza, aqui ficam algumas receitas de marisco que deve utilizar na noite de fim de ano.
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