Chuva Assassina

Chuva assassina

Originally posted 2018-12-07 17:51:53.

Chuva assassina

Debruçado na minha varanda
Escuto o murmúrio da chuva que cai reta
Deixo a noite envolver-me e abraço-a
Como a uma amante recente
Onde tudo é volúpia e desejo incontrolado
Semicerro o olhar e engendro o devir
A paranóia doentia do dia a seguir à noite
Persisto teimosamente e com desvelo a
Existir no ânimo da escuridão
Olho o horizonte e nada alcanço que não tenha visto já
Apenas o mesmo local, agora ensopado, telúrico
Os avejões já decrépitos
Os companheiros de tantas disputas
Clamam por mim e não os escuto
O ruído não se permite esta noite
Ainda que de amigos moribundos
O compasso da chuva mantém-se e danço ao seu som
Percorro, bailarino, o salão de festas
A minha varanda e a minha chuva
Encharco os cabelos esparsos e humedeço os ossos que me doem
Um sofrimento que me arrasta para o precipício
Bailo e percebo que o fim está perto
Chuva assassina

Ultramar

Da janela avistámos o Rego.
Solicitámos a cegueira dos veículos.
A tarde envolvia, quente,
o ar transbordante de oralidades mal concebidas,
ao que ripostámos adormecendo o corpo na alma arrasada
pelo som áspero de um transporte explodindo lentamente,
como se a lassidão da atmosfera estivesse agora mais perto.
O estoiro abriu as janelas aos guardiães das doenças fatais,
que mastigavam a carne apodrecida.

Claro!

Originally posted 2018-09-08 20:52:03.

Infante D. HenriqueAcida e velozmente penetro a
brancura exígua da
casa de banho antiga.
Ajoelho em oração.
Um sanitário mais onde, escuros e inertes,
jazem os restos de um dia sem qualquer coisa e
agradeci.
Sacrifico Sebastião.
Inicío o ritual.
Imagens, imaginário e tudo o mais concreto,
passa interurbano.
“Flash”… e visiono o incendiado Império de D. Henrique,
onde a nau chama a Oriente e a África não tarda de
sexo e abraços com marinheiros sedentos de terra quente e
sangue dos infiéis que estatelam o crânio envolto
na terra árida do Norte.
Sul.
Nada. E Henrique sorve a pátria no
mesmo hausto em ejacula colónias.
Nada. Aí está.
Estava já dentro e
eu próprio me ingeria, qual cerveja gelada em tarde tropical
onde quer que o mundo se encontre
em dia de nuvens sem água.
A areia não corria mais para aquele lado e
o oceano secara.
Praças eram o que havia.
Tantas com a força do verbo cristianizar
que os orgasmos de um navio atracado no
mais boquiaberto dos portos
não conseguiriam satisfazer tais lábios, do
desejo louco de ócio e moribundez.
-“Terra! Terra!”, gritava-se ali.
-“Remem!” Remem, pedaços de inconsciência lusa!”
gritavam os cães de Aljustrel
quando a Virgem apareceu aos pastores
que erravam bebedamente por entre a
boiada de cornos erguidos em preces opostas.
Rodopia Cristo e rodopia o Demónio e
a excentricidade oblíqua termina
numa dança que sobrevoa rasante os
pecados em que a carne é fraca e
abre estaladiça a flor que a inventa.
Quando pariremos nós a fome do terceiro mundo?
-“Avante tropas! Os cães não estão longe.
Dêem-lhes gasolina a beber e um cigarro a fumar.”
Não!
Não!
O dia ía alto e
só à noite a terra é fresca e
a cabeça consegue pensar.
Não tens frio?
Estava onde o houvesse.
E, sem dar por isso, hoje
era um ontem sem sentido,
perdido entre paços de paredes altas e
botas de um morcego coxo
escritor do ar, da luz e do tédio,
desaparecidos pelo esgoto
em que encontrei pela primeira vez a
nau de Henrique Piloto.
-“Ò leme, homem, ò leme.”
-“Senhor, e o Brasil?”
-“Merda, já me esquecia desse! Marcha à ré!”
Santo Infante.
Binómio Justo.
Olé!

Mustafá King

Originally posted 2018-08-11 12:43:09.

MustafáO jovem corria louco, enfurecido, no quinto andar!
Snifava cocaína e saltaria da ponte da revolução,
se quisesse possuir a loucura da infindável e porca existência.
Uma batina manchada das picadas e
a carne dilacerada pelo prazer da alucinação,
trazia no ventre os filhos cor-de-rosa das
raparigas assexuadas, nos actos saltadores de fios eléctricos e
do passear sem direcção com os miolos espalhados no
metálico da cobertura da cabina telefónica.
Os dias do verão apareceram vivos num momento de dor atroz e
olhos de cego homosexual viram pairando embuçados,
os bairros da lata incendiarem-se, com petróleo da longínqua arábia
dos donos da areia triste que,
desalmada, cospe o escarro do pó e
penetra as côrtes assíduas dos sultões apodrecidos
pelo vício do sexo masculino.
Cobriu a amada no berço dos cães azuis e
saltitou na sombra de Abel, Caim dos pobres,
quando o retirar se quedou mudo,
num silêncio de cortar à faca o bandulho dos reis da treta,
que, soltos da inteligência, atacaram os deuses do Olímpo,
num barulho alvoraçado de mulheres fáceis e
gritaram até que o cair da noite abafou a indulgência do sanatório,
onde os loucos refazem, tijolo a tijolo,
a muralha que ruiu ao toque de mustafá king.