"O"

Originally posted 2015-02-04 00:12:38.

DEATH SICK ROOM - EDWARD MUNCH
DEATH SICK ROOM - EDWARD MUNCH

Deixem-me falar-vos de “O”. “O” era um mecânico falido por razões que apresentarei como simples e óbvias: furtava peças de veículos de certos clientes, para colocar nos de outros também certos clientes. Tendo em consideração que havia sempre veículos na oficina o negócio não parecia de todo em todo mau. Tira daqui, põe ali, veículos reparados com investimento zero. Mas era, era mau. Tão mau que além de falido, o “O” era com frequência ameaçado de morte, ou, na melhor das hipóteses, de uma soberba carga de porrada. Devo dizer que ignoro se algum dos seus cada vez mais escassos clientes acabou por lhe chegar a roupa ao pêlo, enfim, dar-lhe um aconchego fraterno, aquele abraço. Sei, contudo, que andou durante tempos infindáveis no fio da navalha. Mas, “O” só correu perigo efectivamente grave, quando, inopinadamente, fugiu com a filha do chicheiro! Episódio de outra novela, que aqui há-de contar-se. Mais tarde.
Mas, antes deste surpreendente acontecimento, passou ele próprio a ser detentor de uma suprema arma branca, comprada a um cigano que a trouxera de Espanha, trocada que fora por um produto miraculoso para curar a disfunção eréctil masculina. “Falta de tesão”, como com propriedade o nómada lhe chamara. “A mim é que não me falta”, apressou-se o “O” a manifestar junto do dito. “Compadre, se algum dia lhe faltar, já sabe, cá estou eu!” Que não, que isso não ia acontecer, que era muito homem, mas que, acrescentou de forma coloquial, se tal improbabilidade se manifestasse já se sabe: “enquanto houver língua e dedo, não há puta que me meta medo…” A oratória tornou-se ainda mais eloquente a partir daí e foi rodando à volta dos copos ora cheios ora vazios, de cerveja para um e vinho tinto para outro.
Como disse, o “O” só correu maior perigo do que as ameaças de maus tratos e morte, quando fugiu com a filha do chicheiro! Nessa altura foi perseguido por arma de caça, cujo proprietário, o pai a quem a desgraça caíra em casa, o ameaçou de “suicídio”. Este tinha já antecedentes na matéria. Um pacato pedreiro, com quem quisera ajustar contas antigas, tinha já feito saber no povoado, que o dito o ameaçara de acto semelhante: “Já me quis fazer a folha, mas quilhou-se. Que vá suicidar a puta que o pariu.” Sabe-se hoje que tudo não passou de uma invenção à moderna, como as que se montam aos politiqueiros, e que nem o pai da foragida, nem o pedreiro sequer se conheciam. Tudo inventado pelo povo para denegrir a imagem do chicheiro, homem de poucos amigos.
“O”, fazia do beber escarros o ponto mais alto da sua carreira na mecânica e a demonstração suprema da sua virilidade. Houve tempos em que os que o rodavam e os que de mais longe podiam deitar um olho, quando estendidos nas esplanadas dos cafés da terra, eram agraciados, com frequência acima do desejável, com essas ocasiões de celebração da masculinidade. Uma ou outra vez esbocei um vómito. Contive-me e suprimi-o com uma golada de Sagres. “O” escarrava duas ou três vezes para dentro do copo da imperial bebida e ingeria os escarros, após o que olhava à sua volta confiante e soltava um profundo e prolongado “ah!” de satisfação.
Os amigos perguntavam-se entre si porque raio o “O” fazia aquilo. Não se sabia, mas era motivo de risada frequente. Algo a que o visado não atribuía importância alguma.
Com o tempo, “O” foi perdendo a cor natural e tornou-se, durante um curto período, um ictérico ambulante. De tal forma que numa tarde de Agosto, fomos informados pelo “R” que o “O” tinha dado entrada no hospital da região (de onde raramente se saía vivo), padecendo de algo a que chamam hepatite! “Onde é que ele apanhou isso?”, interrogou o “R”. Todos olhámos pasmados para o “R”, filho de “E”, por sinal já falecido à altura.
“O” havia de recuperar.
A conselho médico deixou de beber escarros.

Incertezas

Originally posted 2015-02-04 00:11:48.

traumaÀ ligeireza do passo feminino, as pernas que ainda há pouco eram nada mais do que uma sombra, passaram voluptuosas em frente a Peres, que chumbou os olhos nas nádegas que as encimavam. A boca abria-se um pouco mais e não tardava começaria a babar-se.
A saia direita de ganga e algodão que Clara vestia, fazia-lhe sobressair as formas femininas adelgaçadas e elegantes, mostrando bem acima do joelho. Transpirava sensualidade. À medida que ia entrando, outros clientes do Moinho voltavam a cabeça e admiravam Clara, que desinibida sentou as nádegas que Peres fitara, numa das três cadeiras da mesa do fundo, junto à máquina de venda de tabaco.
Ficara de frente e Peres podia agora disfarçadamente admirar o busto farto de Clara, que transbordava da sua blusa branca, e o qual apenas os longos cabelos marrom de vez em quando cobriam.
Peres começou então um exercício mental de conjecturas e adivinhas sobre quem seria aquela mulher, na casa dos quarenta, que nunca por ali constara e cujo corpo escultural começava a despertar nele um intenso desejo.
Não admirava, Peres, com seu ar reservado e distante, não tinha muita sorte nas suas conquistas, mais das vezes porque nem sequer lhes dava começo, de modo que havia já algum tempo que não interagia sexualmente com outro ser.
Estava curioso e fez sinal a um dos empregados do bar para que se aproximasse, o que um deles fez.
– Ó André, não olhe por favor, mas conhece aquela senhora que está sentada junto à máquina do tabaco?
André disfarçou um olhar ligeiro e esboçou um sorriso, julgando saber o motivo da questão e respondeu solícito:
– Não, nunca a vi por aqui. É um belo pedaço! – Enfatizou.
– Está bem, não ajudou nada. Se souber alguma coisa você diz-me? – Perguntou Peres, ávido de informação.
– Claro, Engenheiro.
Clara pediu um café cheio e puxou de um cigarro, que acendeu, protegendo-o com a mão esquerda do ar forçado, que o sistema de ventilação projectava naquela mesa.
Peres, de vez em quando, levantava os olhos do jornal do dia e olhava de viés para a morena desconhecida. Quase esquecera o bourbon. A sua cabeça era um turbilhão de ideias. Engendrava métodos de aproximação que pudessem ser um êxito junto de Clara. Seria uma conquista e tanto, pensou.
Gostava do que via. Contudo, recordou-se de casos do seu passado e sabia que não se deve julgar o livro pela capa. Como seria Clara? O que podia encontrar-se para lá da sua beleza natural? Mas isso importava? Incertezas para as quais o seu frenesim pensativo não tinha resposta. Ainda!

O primeiro vislumbre

Originally posted 2018-08-27 17:54:32.

Frequentar aquele bar tinha-se tornado um hábito incontroverso. Era já como se os pés, àquela hora, terminada a jornada de trabalho, para ali se dirigissem sem que se tornasse necessária qualquer ordem consciente oriunda do seu cérebro. Salvo em dias de horas extraordinárias, em que o director, reverenciando a administração, lhe pedia para finalizar um pedido “inadiável e essencial” para a manutenção em funcionamento da empresa, era ali que terminava os dias, antes de se dirigir ao apartamento que mantinha alugado e parcamente mobilado “para os lados do Martim Moniz”. Era desta forma que respondia aos seus já sobejamente conhecidos empregados do bar que frequentava, quando questionado sobre a sua morada, por entre uma conversa de circunstância, já que o seu ar circunspecto não permitia muitos avanços ou intimidades a terceiros. Ao certo ninguém sabia o que lhe ia na cabeça. Estou em crer que nem ele próprio sabia muito bem!
Àquela hora pedia o seu “bourbon sem gelo”, chovesse ou fizesse sol. As condições atmosféricas nunca interferiram com os seus hábitos alimentares, sobretudo no que toca à bebida. Despedia-se, invariavelmente, depois do terceiro, com um seguro “até amanhã”!
Naquele dia sentia que algo de diferente estaria para acontecer. Estava ansioso por chegar ao seu bar favorito. Ora se sentava ora se levantava. Quando sentado remexia-se na cadeira, coçava-se como se tivesse apanhado sarna. Fartara-se já da sua jornada. Naquele dia a rotina não lhe caiu bem.
Estava farto de ali de estar, de forma que à hora exacta, 17h30m, fez o seu registo pontométrico, saiu finalmente da empresa e só sossegou quando o seu bourbon lhe foi servido, no seu covil preferido.
Conhecia largamente os que por aquela hora ali costumavam parar. Matutava sobre a vida que cada um levaria, o que os fazia avançar, ir em frente, não desesperar da monotonia que as suas vidas haviam de ser. Nunca chegava a conclusão alguma. Também nunca interpelou ninguém para o questionar sobre o assunto, para o confrontar com a possível sonolência do seu ser, da mesquinhez dos seus objectivos. Todos lhe pareciam gente sem outro rumo que não fosse o de ali estar, porque um dia alguém os pariu e lhes disse: “Estais vivos, agora desenrascai-vos!” Mas seria ele diferente?
Talvez sim, talvez não! Mas pelo menos ele pensava no assunto, caramba. Sim podia viver uma vidinha de trazer por casa, mas tinha consciência disso. Era lúcido, mas solitário, mais por opção do que por constrangimento. A sua vida social resumia-se a uns quantos jantares em casa do exíguo círculo de amigos que mantinha.
Foi afogando a sua ansiedade nos sucessivos goles de “bourbon” que suavemente lhe acariciavam a garganta. Olhou de relance em redor e tudo lhe pareceu igual a tantos outros dias: os mesmos semblantes carregados, o odor a café, a suave brisa que entrava pela porta entreaberta… Nada de novo, pensou! A que propósito tantas ânsias, questionou-se.
Estava já no seu terceiro, quando o sol no declínio, fez exagerar no chão do “Moinho de Café”, o comprimento de umas elegantes pernas femininas, que nas extremidades se faziam acompanhar de uns sapatos pretos de salto alto, por certo italianos.
Peres pousou o copo meio de bourbon e deixou cair ligeiramente o queixo, entreabrindo a boca o suficiente para mostrar a língua curtida pelo álcool.
Há cinco anos que vivia na Capital. Veio do interior, de uma sucursal, para a sede da empresa, com ordens para “colocar na linha aquele pessoal” e durante todo o tempo em que frequenta o “Moinho”, nunca por ali viu pernas iguais àquelas. Caramba, nem estava em si e ainda não tinha visto da mulher sequer metade.

Foto de Joel Peter Witkin

Por um pacote de tabaco

Originally posted 2015-02-04 00:16:57.

elaPor um pacote de tabaco

Deu por si de jornal pousado e de olhar fixo no copo meio bebido, decidindo naquele instante que não iria esperar pelas informações do André. Ele próprio tinha que lidar com a ansiedade e incerteza de que estava possuído, qual personagem cinematográfica a carecer do exorcismo de um profissional da Santa Igreja, e ir em frente com tudo o que tinha e que, a bem dizer, era uma mão cheia de nada!
No entanto, o plano estava bolado: ir à máquina de sustentação do vício levantar um maço de tabaco e, de permeio, entabular conversa com Clara. O plano só tinha duas falhas: Peres nunca fumou e não sabia ainda que dizer a Clara, para início de conversa.
Alguma coisa se há-de arranjar – pensou.
Levantou-se decidido. Tomou o caminho mais curto para o balcão, evitando mesas e cadeiras mal arrumadas e pediu:
– André troque-me aí cinco euros para a máquina, se faz favor.
Confuso, por sabê-lo não fumador, André, devolveu-lhe a deixa com uma interrogação, tudo menos própria para o silêncio da sala:
– Para a máquina? Qual máquina? A do tabaco?
Peres roborizou, encolerizado pela inoportunidade do questionário e redarguiu:
– Claro, para qual havia de ser? Tem cá outra? Não pois não? Então!
– Mas o engenheiro não fuma!
Irra que o gajo é burro – cogitou Peres.
Entretanto, Clara notara já que havia algo em que, pelos trejeitos e gestos de um e outro, empregado e cliente pareciam estar em desacordo, sem contudo entender qual o motivo da discórdia.
– Está bem ó André, mas agora quero fumar, pronto! Além disso não tenho que dar-lhe quaisquer explicações. Os pulmões não são seus, portanto…
– Ó Engenheiro, tem razão, mas como nunca o vi a fumar…
– André, chegue aqui – pediu baixinho Peres, baixando os olhos enquanto chamava o seu interlocutor com o indicador direito. Aquele encostou-se o mais que pode e que o balcão permitia, ao rosto do engenheiro, para este lhe segredar:
– É pá, você cale-se carago! Não vê que é para ir meter conversa com a gaja!
Quase que abocanhando a orelha de Peres, o empregado do Moinho, não deixa os seus créditos por mãos alheias e retorque em surdina:
– E para que é o tabaco? Vai mocá-la com cigarros? Olhe lá, quer que eu vá lá dizer que o engenheiro está interessado em dar-lhe uma palavrinha?
– Obrigado André. Se me desse os cinco euros em moedas já era bom…
– Bem, o engenheiro é que sabe – a demanda por cinco moedas terminara e André, finalmente, trocava a nota de cinco por outras tantas moedas de euro.
De posse das preciosas moedas, Peres fixou os olhos na máquina do tabaco, enquanto pensava na marca de cigarros que iria comprar. O corpo vibrava-lhe com um nervoso miudinho e fez questão de não olhar para Clara enquanto se dirigia para a dita máquina, fingindo-se desinteressado.
Avançava decidido. No entanto, sentia uma involuntária rigidez nas pernas, que lhe impediam um andar natural, fazendo de Peres um morto-vivo que não dobra os joelhos nem por nada.
Determinado, continuava a sua heróica demanda por um pacote de tabaco, até que, a menos de dois metros do alvo, a perna de uma das cadeiras mal arrumadas do café, se lhe atravessou com firmeza no caminho e fez Peres cambalear errático até, por fim, cair de borco no colo de Clara.

CAPITULO I

CAPITULO II