Incertezas

Originally posted 2015-02-04 00:11:48.

traumaÀ ligeireza do passo feminino, as pernas que ainda há pouco eram nada mais do que uma sombra, passaram voluptuosas em frente a Peres, que chumbou os olhos nas nádegas que as encimavam. A boca abria-se um pouco mais e não tardava começaria a babar-se.
A saia direita de ganga e algodão que Clara vestia, fazia-lhe sobressair as formas femininas adelgaçadas e elegantes, mostrando bem acima do joelho. Transpirava sensualidade. À medida que ia entrando, outros clientes do Moinho voltavam a cabeça e admiravam Clara, que desinibida sentou as nádegas que Peres fitara, numa das três cadeiras da mesa do fundo, junto à máquina de venda de tabaco.
Ficara de frente e Peres podia agora disfarçadamente admirar o busto farto de Clara, que transbordava da sua blusa branca, e o qual apenas os longos cabelos marrom de vez em quando cobriam.
Peres começou então um exercício mental de conjecturas e adivinhas sobre quem seria aquela mulher, na casa dos quarenta, que nunca por ali constara e cujo corpo escultural começava a despertar nele um intenso desejo.
Não admirava, Peres, com seu ar reservado e distante, não tinha muita sorte nas suas conquistas, mais das vezes porque nem sequer lhes dava começo, de modo que havia já algum tempo que não interagia sexualmente com outro ser.
Estava curioso e fez sinal a um dos empregados do bar para que se aproximasse, o que um deles fez.
– Ó André, não olhe por favor, mas conhece aquela senhora que está sentada junto à máquina do tabaco?
André disfarçou um olhar ligeiro e esboçou um sorriso, julgando saber o motivo da questão e respondeu solícito:
– Não, nunca a vi por aqui. É um belo pedaço! – Enfatizou.
– Está bem, não ajudou nada. Se souber alguma coisa você diz-me? – Perguntou Peres, ávido de informação.
– Claro, Engenheiro.
Clara pediu um café cheio e puxou de um cigarro, que acendeu, protegendo-o com a mão esquerda do ar forçado, que o sistema de ventilação projectava naquela mesa.
Peres, de vez em quando, levantava os olhos do jornal do dia e olhava de viés para a morena desconhecida. Quase esquecera o bourbon. A sua cabeça era um turbilhão de ideias. Engendrava métodos de aproximação que pudessem ser um êxito junto de Clara. Seria uma conquista e tanto, pensou.
Gostava do que via. Contudo, recordou-se de casos do seu passado e sabia que não se deve julgar o livro pela capa. Como seria Clara? O que podia encontrar-se para lá da sua beleza natural? Mas isso importava? Incertezas para as quais o seu frenesim pensativo não tinha resposta. Ainda!

O primeiro vislumbre

Originally posted 2018-08-27 17:54:32.

Frequentar aquele bar tinha-se tornado um hábito incontroverso. Era já como se os pés, àquela hora, terminada a jornada de trabalho, para ali se dirigissem sem que se tornasse necessária qualquer ordem consciente oriunda do seu cérebro. Salvo em dias de horas extraordinárias, em que o director, reverenciando a administração, lhe pedia para finalizar um pedido “inadiável e essencial” para a manutenção em funcionamento da empresa, era ali que terminava os dias, antes de se dirigir ao apartamento que mantinha alugado e parcamente mobilado “para os lados do Martim Moniz”. Era desta forma que respondia aos seus já sobejamente conhecidos empregados do bar que frequentava, quando questionado sobre a sua morada, por entre uma conversa de circunstância, já que o seu ar circunspecto não permitia muitos avanços ou intimidades a terceiros. Ao certo ninguém sabia o que lhe ia na cabeça. Estou em crer que nem ele próprio sabia muito bem!
Àquela hora pedia o seu “bourbon sem gelo”, chovesse ou fizesse sol. As condições atmosféricas nunca interferiram com os seus hábitos alimentares, sobretudo no que toca à bebida. Despedia-se, invariavelmente, depois do terceiro, com um seguro “até amanhã”!
Naquele dia sentia que algo de diferente estaria para acontecer. Estava ansioso por chegar ao seu bar favorito. Ora se sentava ora se levantava. Quando sentado remexia-se na cadeira, coçava-se como se tivesse apanhado sarna. Fartara-se já da sua jornada. Naquele dia a rotina não lhe caiu bem.
Estava farto de ali de estar, de forma que à hora exacta, 17h30m, fez o seu registo pontométrico, saiu finalmente da empresa e só sossegou quando o seu bourbon lhe foi servido, no seu covil preferido.
Conhecia largamente os que por aquela hora ali costumavam parar. Matutava sobre a vida que cada um levaria, o que os fazia avançar, ir em frente, não desesperar da monotonia que as suas vidas haviam de ser. Nunca chegava a conclusão alguma. Também nunca interpelou ninguém para o questionar sobre o assunto, para o confrontar com a possível sonolência do seu ser, da mesquinhez dos seus objectivos. Todos lhe pareciam gente sem outro rumo que não fosse o de ali estar, porque um dia alguém os pariu e lhes disse: “Estais vivos, agora desenrascai-vos!” Mas seria ele diferente?
Talvez sim, talvez não! Mas pelo menos ele pensava no assunto, caramba. Sim podia viver uma vidinha de trazer por casa, mas tinha consciência disso. Era lúcido, mas solitário, mais por opção do que por constrangimento. A sua vida social resumia-se a uns quantos jantares em casa do exíguo círculo de amigos que mantinha.
Foi afogando a sua ansiedade nos sucessivos goles de “bourbon” que suavemente lhe acariciavam a garganta. Olhou de relance em redor e tudo lhe pareceu igual a tantos outros dias: os mesmos semblantes carregados, o odor a café, a suave brisa que entrava pela porta entreaberta… Nada de novo, pensou! A que propósito tantas ânsias, questionou-se.
Estava já no seu terceiro, quando o sol no declínio, fez exagerar no chão do “Moinho de Café”, o comprimento de umas elegantes pernas femininas, que nas extremidades se faziam acompanhar de uns sapatos pretos de salto alto, por certo italianos.
Peres pousou o copo meio de bourbon e deixou cair ligeiramente o queixo, entreabrindo a boca o suficiente para mostrar a língua curtida pelo álcool.
Há cinco anos que vivia na Capital. Veio do interior, de uma sucursal, para a sede da empresa, com ordens para “colocar na linha aquele pessoal” e durante todo o tempo em que frequenta o “Moinho”, nunca por ali viu pernas iguais àquelas. Caramba, nem estava em si e ainda não tinha visto da mulher sequer metade.

Foto de Joel Peter Witkin
Planeta dos catos

Poema em ti

Originally posted 2015-02-04 00:17:36.

I am nudePodias fazer-me um poema!
Um canto que falasse do teu sentir.
Não uma elegia em que discorresses sobre o teu passado,
Pesado, castrador, um negro edema.
Antes um escrito sobre o presente e quiçá o devir.

Atrás ficou um tanto tempo.
Uma época em que sobreviveste aos dias.
Datas sem interesse, também momentos de prazer, sim,
Mas de seres que se estranham no seu intimo,
Num desmoronar do que por certo tomado havias.

Escreve sobre o bem que me queres,
A felicidade que te dou e da que ainda tenho para te dar.
O quanto desejas o meu corpo nu.
Fala mesmo do odor da carne, se puderes.
Do amor que fazemos à ténue luz do luar.

Olha, fala de como os nossos sentires se dão,
De como os nossos pensamentos se assemelham.
Podias escrever ou falar, já nem sei que verbo usar,
Uma prosa rimada enaltecendo a paixão,
Da coragem que te dou, do que as nossas almas espelham.

Podias falar do que quisesses, desde que fosse de mim,
De nós, das bocas apaixonadas que se unem sem pudor,
Das mãos que se abrigam sob as roupas.
Ou então grita, grita como quando repetes, sim, sim…
Alardeia o que tens por mim, se paixão ou amor.

Faz isso. Ou já fizeste?
Acabaste de fazer!
Sentindo-me os desejos mais íntimos e obscuros,
Na minha boca colocaste, os versos que agora me deste.
Versos que lidos e sentidos, me dão prazer!