Originally posted 2015-02-04 00:13:02.
Vasco
Era um miúdo traquina. Nascido na província, o seu pequeno mundo de criança a quem tudo parece enorme, era confinado ao local onde vivia e à terra que o vira nascer. Lugares por onde se dispersava a família mais próxima. Isto para não mencionar os que, na busca de melhor sustento, tinham emigrado para terras de França, local predilecto da generalidade dos seus conterrâneos. Iam em busca de abastança, com a terra de origem na memória, esperando as férias para a visitar, sonhando com o dia em que voltariam, definitivamente, para gozar a opulência das moradias construídas com a suas próprias mãos, tijolo sobre tijolo, ano após ano. Assim tinha sido com as tias paternas. Quanto à família materna, essa preferira o calor do Brasil e o bulício da capital lisboeta, à estranja europeia. Uns e outros, porém, com a mira de melhores vidas, numa fuga desesperada à bonança doentia do interior português, incapaz de conter a hemorragia a que assistia impavidamente. Ele por ali foi andando, cumprindo os seus deveres de catraio brincalhão, frequentando a escola e fazendo escrupulosamente os deveres de casa: as contas, a cópia, o ditado, que a mãe lhe lia, enquanto preparava a refeição da noite. Se bem que para as contas não tivesse nunca tido qualquer inclinação, para a língua pátria isso era bem diferente. Tinha com ele uma espécie de “tolerância zero”, em relação aos erros gramaticais e de ortografia. Raramente, nos ditados de sábado de manhã, após a totalidade da turma ter cantado em coro o hino nacional e realizado as orações da praxe, em pé, ao lado da carteira, olhando as figuras de Salazar e Américo Tomás que encimavam o quadro de lousa, cometia qualquer falta. Nestes dias as regras da senhora professora, oriunda não se sabia de onde e que arrendara um quarto na terra para viver durante o período escolar, eram bastante simples: tantas reguadas quantos os erros dados. Sabia-se à partida que havia de haver alguém que sairia dali com as mãos em brasa, fruto do mau domínio da língua de Camões ou de desatenção às palavras lidas em alta voz, pela professora num dos livros que só ela conhecia. Alguns continham palavras estranhas, que não vinham naquele livro que obrigatoriamente tinham que ler e que tinha a adornar-lhe as lições, desenhos coloridos de crianças que se divertem jogando à bola, num prado verde, ou que, de cesta na mão, vão levar o almoço ao pai que é pedreiro, profissão muito nobre, mas de poucos proventos, atravessando riachos de águas cristalinas, onde bebem os animais da quinta do tio António e onde todos, sem excepção, são felizes. Uma felicidade que só vinha naquele livro e que contrastava com a dura realidade. Mas isso era, acima de tudo, um assunto de adultos, que tinham que preocupar-se com o sustento da família e do “vivo”.
Ele, por seu lado, vivia um contentamento bucólico, rodeado de amigos e de estradas estreitas, ocasionalmente visitadas por carros que se dirigiam sabe-se lá para onde e caminhos campestres por onde todos corriam com “carrongas” improvisadas.
Esses tempos pareciam-lhe infindáveis e ansiava pela idade adulta. Poder decidir por si próprio, sem a supervisão parental, o que fazer, a que horas chegar a casa e ler o que lhe apetecesse, para lá daqueles livros de idílicos paraísos para manipular tolos e satisfazer os intentos do regime.
A escola era um local de aprendizagem e de convívio. É certo que aprendeu coisas naquele local, bom não falando das contas, sobretudo de dividir, mas sentia-se minúsculo num mundo feito para pessoas grandes, o que lhe provocava alguns complexos de inferioridade, para já não falar da sua pequena estatura.
Os dias sucediam-se com a sensação estranha de que jamais seria igual aos outros adultos quando o tempo de o ser chegasse.
Num dia de escola como tantos outros, foi chamado a comparecer junto do quadro de lousa, para realizar umas certas operações aritméticas.
– Vasco, ao quadro – mandou o senhor professor com autoridade. Usava óculos redondos muito grossos e uma pêra, que a turma designava “de chibo”, em alusão ao macho da cabra.
O Vasco ficou aterrado. Ainda por cima contas de dividir. “Sou um homem morto”, pensou. Subiu a medo o estrado onde já se encontrava “o barba de chibo” e pegou trémulo no giz.
– Vá lá menino Vasco! Faça lá essa conta!
Na sala de aula podia quase ouvir-se a “barba de chibo” crescer. Tal o silencio que se instalou.
A conta estava enunciada quase no topo do quadro. O senhor professor, do alto do seu metro e oitenta e cinco, mais coisa menos coisa, esquecia que os meninos ainda eram meninos e não raras vezes tinha que reescrever o enunciado das contas mais abaixo, para que aqueles pudessem completar o exercício, logo a seguir aos dados fornecidos como ele exigia.
Desta vez, contudo, por distracção ou preguiça, o enunciado escrito acima, não foi reescrito no fundo do quadro. O Vasco quedou-se a fitar o professor, os olhos pedindo que fosse tomada em consideração a sua estatura. O professor nada. Olhava pela janela para o sol de inicio de verão e de fim de aulas. Então, o Vasco decidiu-se a reclamar:
– Pressôr? A conta tá munto lá cima e não chego lá. Não sou grande com’ ó pressôr.
A turma ia arregalando os olhos, a medida que o traquina do Vasco proferia cada uma das palavras. “Estaria doido? “Sujeita-se a levar um par de tabefes bem assentes.” “Ou umas valentes reguadas”, eram os pensamentos que percorriam a mente dos emudecidos colegas do Vasco.
O professor, austero como sempre, desviou a atenção da janela e os olhos dos dois encontraram-se. O Vasco notou no olhar do mestre algo de diferente. De severo passou lentamente a um olhar doce e brilhante. Não sabia o que pensar. O que estaria para vir daqueles lados? Perante o ar amedrontado de Vasco, o seu professor desde a primeira classe, a quem respeitava, que era exigente, que pedia sacrifícios no estudo, questionou-o emanando calma no seu discurso:
– Então, que se passa, não chegas lá cima? – O Vasco acenou afirmativamente.
– Olha, para mim é muito fácil! Tens que crescer mais e… – O Vasco interrompeu-o ripostando:
– Sim, mas agora sou pequeno e não chego lá.
O mestre acocorou-se. Os seus olhos ficaram ao nível dos do Vasco e disse-lhe fitando-o sempre:
– Vasco, alguns homens nascem grandes. Outros fazem-se grandes. E tu?