Da janela avistámos o Rego.
Solicitámos a cegueira dos veículos.
A tarde envolvia, quente,
o ar transbordante de oralidades mal concebidas,
ao que ripostámos adormecendo o corpo na alma arrasada
pelo som áspero de um transporte explodindo lentamente,
como se a lassidão da atmosfera estivesse agora mais perto.
O estoiro abriu as janelas aos guardiães das doenças fatais,
que mastigavam a carne apodrecida.
Claro!
Originally posted 2018-09-08 20:52:03.
Acida e velozmente penetro a
brancura exígua da
casa de banho antiga.
Ajoelho em oração.
Um sanitário mais onde, escuros e inertes,
jazem os restos de um dia sem qualquer coisa e
agradeci.
Sacrifico Sebastião.
Inicío o ritual.
Imagens, imaginário e tudo o mais concreto,
passa interurbano.
“Flash”… e visiono o incendiado Império de D. Henrique,
onde a nau chama a Oriente e a África não tarda de
sexo e abraços com marinheiros sedentos de terra quente e
sangue dos infiéis que estatelam o crânio envolto
na terra árida do Norte.
Sul.
Nada. E Henrique sorve a pátria no
mesmo hausto em ejacula colónias.
Nada. Aí está.
Estava já dentro e
eu próprio me ingeria, qual cerveja gelada em tarde tropical
onde quer que o mundo se encontre
em dia de nuvens sem água.
A areia não corria mais para aquele lado e
o oceano secara.
Praças eram o que havia.
Tantas com a força do verbo cristianizar
que os orgasmos de um navio atracado no
mais boquiaberto dos portos
não conseguiriam satisfazer tais lábios, do
desejo louco de ócio e moribundez.
-“Terra! Terra!”, gritava-se ali.
-“Remem!” Remem, pedaços de inconsciência lusa!”
gritavam os cães de Aljustrel
quando a Virgem apareceu aos pastores
que erravam bebedamente por entre a
boiada de cornos erguidos em preces opostas.
Rodopia Cristo e rodopia o Demónio e
a excentricidade oblíqua termina
numa dança que sobrevoa rasante os
pecados em que a carne é fraca e
abre estaladiça a flor que a inventa.
Quando pariremos nós a fome do terceiro mundo?
-“Avante tropas! Os cães não estão longe.
Dêem-lhes gasolina a beber e um cigarro a fumar.”
Não!
Não!
O dia ía alto e
só à noite a terra é fresca e
a cabeça consegue pensar.
Não tens frio?
Estava onde o houvesse.
E, sem dar por isso, hoje
era um ontem sem sentido,
perdido entre paços de paredes altas e
botas de um morcego coxo
escritor do ar, da luz e do tédio,
desaparecidos pelo esgoto
em que encontrei pela primeira vez a
nau de Henrique Piloto.
-“Ò leme, homem, ò leme.”
-“Senhor, e o Brasil?”
-“Merda, já me esquecia desse! Marcha à ré!”
Santo Infante.
Binómio Justo.
Olé!
Uma pergunta, duas respostas!
Originally posted 2015-02-04 00:15:23.
Para os que não tiveram acesso ao número de Julho de 2006 da Revista Pessoal aqui fica o artigo que por lá deixei, sobre a minha viagem a África em 2005.
“Uma pergunta: – O que queres ser quando fores grande?
– Padre!…
A resposta convicta, vinda de um puto de oito anos, não surpreendia ninguém. O país, católico de constituição e tudo, vivia à sombra de Fátima e a aldeia do interior por onde percorri os primeiros caminhos não fugia à regra: todos praticavam, cada um à sua maneira: uns iam à missa, outros iam à taberna, mas todos com a mesma devoção.
Os provérbios datam usualmente de tempos imemoriais e raramente algum ser vivo, racional ou nem tanto, lhe conhece o autor. E como «a conversa é como as cerejas», a curiosidade do perguntador levava inevitavelmente a uma segunda questão que desvendasse a razão profunda de resposta tão segura de vida dedicada ao culto e ao sacrifício terreno, com vista a melhores tempos no além:
– Por quê?
– ‘tão, p’ra não ir à guerra!
Apesar de a televisão do regime da altura, no que toca à guerra em África, apenas anunciar vitórias retumbantes sobre o inimigo terrorista e transmitir as mensagens de natal prenunciando «um ano novo cheio de propriedades», o facto é que, por entre correrias de miúdos despreocupados que tinham que estar em casa ao toque das ave-marias, já tinha assistido a, pelo menos, um funeral de um filho da terra a quem África reclamara a vida e algumas porções do próprio corpo. Cochichava-se que a urna não pôde ser aberta porque faltavam alguns pedaços que a explosão atirara «a mais de 100 metros». Seja. Não se abriu, mas fiquei a saber que a televisão mentia e que sim, que se morria por algo que eu não percebia bem o que era. Vai daí, ser padre era o menor dos males e a melhor das soluções para evitar regressar a casa empacotado.
Mais tarde, vim a saber que os padres também iam à guerra como capelões. Irra que não havia mesmo nada a fazer! Fosse como fosse, sempre era melhor do que andar de G3 em riste a tentar matar terroristas. E, já que não podia ver África por um canudo, pronto, lá iria como capelão, mas contrariado.
Contudo, a revolução de Abril estragou-me os planos, e apesar de ter chegado a estar inscrito no seminário para seguir uma vida dedicada à fé, o facto é que, pensando bem, o sacerdócio não era o futuro profissional que almejava. E não foi. Graças a Deus!
Como se vê, a minha relação com África começou da pior forma: nem vê-la, e a fazê-lo, só através do ecrã seguro da televisão.
Por qualquer razão, a África que sempre imaginei foi a África vitoriana de «África Minha». Era a África que gostaria de ter visitado. Nem digo que essa fosse a melhor África. Não foi de certeza. Mas como não tenho que ser politicamente correcto, algo que, aliás, me dá a volta ao bucho, era essa África, sim, que eu gostava de ter visitado. Desaparecida que foi, essa e a que se lhe seguiu, com guerras civis à mistura, faltava-me a querença para ir até lá. Cenários de destruição e pobreza extrema não são o meu forte.
Os anos passaram e o destino haveria de me fazer cruzar com Moçambique por intermédio de uma rapariga que, filha de portugueses retornados, ali nascera. O desejo de rever a casa que habitara enquanto criança e o mundo que conhecia e vira destruído num rápido pestanejar não eram, ainda assim (e hoje percebo por quê), suficientes para correr o risco de percorrer uns bons pares de quilómetros durante 10 horas de voo.
Foi a fotografia, arte que me perseguia desde a adolescência, que me levou a África. Ou melhor, o cruzamento dos desejos daquela rapariga e os meus de fotografar longe de casa, noutro continente, e admirar o que em criança, para lá do que a televisão mostrava, apenas imaginara.
Mas o que pretendia eu de África? Não sei!
O certo é que no dia marcado, com atraso de meia hora, mais coisa menos coisa, o Airbus aterrou num aeroporto de características marcadamente sessentistas. No tapete rolante para o qual alguém atirava malas, podia ainda ler-se «Fabricado em Lourenço Marques». Aliás, todo o aeroporto tinha sido fabricado em Lourenço Marques! De Maputo, só mesmo algumas divisórias de alumínio a destoarem da madeira que predominava. Depois de uma hora de espera pelo visto e de alguém ter solicitado «50 contos» (2,50 euros), que, aliás, não foram entregues, para evitar demoras, entrava finalmente em África, de papel passado e tudo. Entrada atribulada, diga-se desde já, pela barafunda que rapidamente se gerou em torno dos viajantes de cujas mãos as malas desapareciam, levadas por solícitos rapazes na esperança de alguns euros.
Almoço na feira-popular do sítio e ala que se faz tarde, aeroporto de novo, para voo rápido até à Ilha de Inhaca. Comparado com este, o voo de 10 horas até Maputo tinha sido uma brincadeira de criança. Sosseguei apenas quando soube estar a bordo do bimotor um ministro da terra. Aquelas linhas aéreas não iam dar-se ao luxo de transportar um ministro, numa avioneta prestes a desfazer-se (pensava eu) e, portanto, com fortes probabilidades de se fazer ao mar!
Chegados e instalados na ilha que havia de nos acolher durante três dias de suculentos repastos (chapelada ao ‘chef’ do hotel), banhos em águas cálidas e passeios pelo interior da vegetação, imaginando noutro local, noutra era, mas no mesmo país, defensores da pátria de cá e de lá atirando a matar, fomos em busca do nativo que haveria de nos transportar pela ilha numa 4×4 de caixa aberta. Poucos metros depois de termos abandonado o perímetro do «Lodge», o Eugénio, questionado por aqueles recém-chegados, afiançou poder indicar a pessoa certa. Se bem o disse, melhor o fez. A apenas alguns metros mais, junto ao seu estabelecimento – um espaço comercial dos que sempre existiram nas aldeias do nosso interior e que vendia toda a espécie de géneros, comestíveis e de outra natureza –, estava o Maurício. Ao ouvi-lo falar, percebi que, efectivamente, não estava de todo num local em que palavras como «‘stress’», «depressa», «imediatamente» e outras que tais tivessem lugar por entre o vocabulário daquele gente simpática. Ao ouvi-lo proferir palavra atrás de palavra, senti que provavelmente a avioneta se tinha feito ao mar e estava já noutra dimensão. Duvido que alguma vez volte a ouvir algo, seja o que for, proferido com tamanha calma. Podia escutar o Maurício horas a fio sem me cansar. O discurso poderia até ser desconexo, que não era. As palavras funcionavam para mim, melhor do que comprimidos de 25 mg de ADT tomados uns após outros, doses massivas de uma droga natural. Elegi-o o meu anti-‘stress’ por excelência. Além disso, o Maurício é benfiquista e adepto da selecção de todos nós.
Os dias de Inhaca correram tranquilos. Banhos no Índico e motivos mais do que suficientes para fotografar: crianças no seu último dia de aulas correndo para nós em busca dos rebuçados que distribuíamos, paisagens verdejantes, pessoas amáveis e simpáticas, que por sinal detestavam ser fotografadas, pescadores regressados da faina, de tudo Inhaca nos deu.
Mas, apesar da calma mauriciana, o tempo foge mais do que nós e num ápice estávamos de regresso a Maputo, para uma noite de divertimento no África Bar, para o qual corremos de táxi, sem taxímetro, e com cujo motorista discutimos previamente o preço da corrida, que acabou por ficar nos «250 contos», mesmo com a curva «a mais» que era necessário fazer para levar o João ao Hotel.
Outro dia, mercado do pau, putos à chuva vendendo a madeira que as mãos transformam em peças de arte, almoço na Costa do Sol e Kruger Park à vista. África do Sul.
Se não é amante da natureza, não vá ao Kruger Park! Mas se, por outro lado, gosta dos filmes do John Weissmuller, então está em casa. Ali todos podemos ser um pequeno Tarzan. Eu fui Tarzan (bom, um arremedo), mas de máquina a tiracolo. Os bichos e o contacto com a natureza sempre preencheram uma boa parte de mim e agora tinha a oportunidade de ali estar e sabê-los perto, escutá-los, ouvir-lhes os diferentes sons e fotografá-los.
Ainda hoje, mas antes mais amiúde, se vêem pelas nossas estradas coelhos bravos, correndo o risco de morte numa rápida travessia. No Kruger, impala é sinónimo de coelho, tal o seu número. Junto das «picadas», sozinhos, em manadas, abundam impalas que, de inicio, atravessada que foi a porta do Rio dos Crocodilos, fotografámos incessantemente, em disparo contínuo como se impunha, até quilómetros mais à frente desistirmos de dar atenção àquele simpático animal:
– Eh! Impalas!
Bichos novos era o que se queria. Dos que nunca tínhamos visto, nem na magreza do espaço de um zoológico qualquer. Objectivas de distância focal longa, bem fora das janelas de correr do mini-bus, que avançava e recuava às nossas ordens individuais e anárquicas de:
– Ande, senhor Zé!
– Prá frente!
– Não, faça marcha-atrás.
– Prá frente, caraças!
– Porra, perdi o ângulo!
Desnecessário será dizer que o senhor Zé começava já a ficar de carapinha em pé e de vez em quando mostrava um sorriso branco, mas amarelo lá bem no fundo.
– Olhe ali ó senhor Zé. É um búfalo, pare, pare! – Gritava a guia.
E o senhor Zé parava. E fomos nisto, até o sol se pôr, no primeiro dia de picada. Logo nesse final de dia, testemunhou quem quis que aquele pôr-do-sol não era igual ao nosso e que, porventura, a beleza de África estava também no céu.
No dia seguinte, já com guia profissional que cheirava os bichos ao longe e perscrutava o horizonte com os seus usados binóculos, a caçada havia de ser mais profícua. Avançava lentamente para não espantar a caça e murmurava:
– Look, look! It’s a buffalo! Don’t make any noise.
E nós obedecíamos. Mas só de boca, porque as Nikon, Cânon, Olympus e outras disparavam em contínuo, sem cessar, deixando um ruído de fundo semelhante ao da guerra ultramarina, com as G3 a dispararem em todas as direcções. Leões, elefantes, águias, necrófagos, lagartos, rinocerontes, macacada a dar com um pau (de preferência estacionada em plena via, para dificultar o trânsito) e toda uma imensidão de bichos, dos quais eu até já esqueci a raça e o nome, passaram pelas lentes que se atiravam borda fora daquele jipe.
Contudo, o Tarzan em mim só à noite descobriu o que já suspeitava. Não sou muito velho, tenho uns anos, mais do que os que hei-de viver, mas se não voltar a África e ao Kruger Park jamais terei a sensação de que, de facto, é impossível estarmos sós no universo. Ele há tantas, tantas, mas tantas estrelas no céu africano que alguma há-de ter perto de si um universo habitado. Nunca tinha visto e nunca mais vi um céu tão estrelado. Podia ter ficado deitado num banco comprido, dos que por ali havia junto dos ‘bungalows’, no negro da noite, fitando o infinito do céu e ouvindo em fundo os sons da selva, 360 graus à minha volta: os rinos no curso de água que por ali passava, os macacos agitando os ramos das árvores, os elefantes mais ao longe. Todos, todos ali e eu tão perto.
Estava ganha a viagem a África. Depois houve mais noites, mais animais, mais fotos, mais de tudo e tudo bom. Até São Pedro, que já esquecera aquelas paragens havia quase um ano, numa das noites no Kruger lançou sobre nós uma ribombante trovoada tropical, que nos ensopou até aos ossos, enquanto, perdidos na noite, procurávamos em completo breu o número de cada um dos quartos. Já dentro de um deles tive um pensamento agradável e reconfortante: do céu provinha o poderoso ronco do deus Thor, acompanhado pelos sons da selva, e eu estava ali a escutar. Era um privilegiado!
Mas o que queria eu de África? Não sabia! Sei agora que o que eu lhe queria era eu! A rapariga moçambicana, pouco depois do regresso, revelou-se um lamentável erro de mais de 20 anos. Mas África tinha sido boa para mim. E enquanto tento finalizar este texto, por entre lágrimas que correm descontroladamente, penso que se hoje a Dona Luzia, do alto dos seus cabelos brancos, me perguntasse «O que queres ser quando fores grande?», se isso acontecesse, eu responderia sem hesitar, pronta e ainda mais convictamente:
– Quando for grande, quero ser apenas eu!”
Tundra
Originally posted 2013-09-07 00:41:42.
Tipos que misturaram as entranhas na terra barrenta da tundra.
Dependuraram corações exangues em altos embondeiros,
projectados do solo pelo músculo de uma anti-pessoal.
Saíram de lá tocos magníficos!
A selva verde tornada numa antonímia vermelha pelas explosões da libertação,
esperando o castanho da terra.
Num ápice a esperança de vida tolhida pelas minas e
armadilhas do destino pátrio.
Os despojos do dia num saco negro e
um bilhete de regresso ao solo materno e
às carpideiras da ultima viagem em terra firme.
Pó ao pó com guarda de honra e
tiros certeiros aos pombos do padastro que gozou da morte,
no entorpecimento da embriaguez diária.
Um buraco de dois metros e
a madeira assenta silenciosa na memória dos demónios da noite,
que abrem finalmente os olhos e
o calor da putrefacção alimenta o orgulho da nação,
inchada de jovens cadáveres chacinados.
Sim, sem coragem não há glória.
Glória à mutilação, violação insana,
crânios arreganhados pelo movimento veloz de lâminas artesanais,
estômagos vazios perfurados pela rectidão dos projecteis.
Regresso mutilado,
cadeiras rodadas e muletas de madeira traumatizada,
apostas na morte lenta do esquálido subsídio governamental.
Formar!…
À vontade!
*foto: autor desconhecido