O primeiro vislumbre

Originally posted 2018-08-27 17:54:32.

Frequentar aquele bar tinha-se tornado um hábito incontroverso. Era já como se os pés, àquela hora, terminada a jornada de trabalho, para ali se dirigissem sem que se tornasse necessária qualquer ordem consciente oriunda do seu cérebro. Salvo em dias de horas extraordinárias, em que o director, reverenciando a administração, lhe pedia para finalizar um pedido “inadiável e essencial” para a manutenção em funcionamento da empresa, era ali que terminava os dias, antes de se dirigir ao apartamento que mantinha alugado e parcamente mobilado “para os lados do Martim Moniz”. Era desta forma que respondia aos seus já sobejamente conhecidos empregados do bar que frequentava, quando questionado sobre a sua morada, por entre uma conversa de circunstância, já que o seu ar circunspecto não permitia muitos avanços ou intimidades a terceiros. Ao certo ninguém sabia o que lhe ia na cabeça. Estou em crer que nem ele próprio sabia muito bem!
Àquela hora pedia o seu “bourbon sem gelo”, chovesse ou fizesse sol. As condições atmosféricas nunca interferiram com os seus hábitos alimentares, sobretudo no que toca à bebida. Despedia-se, invariavelmente, depois do terceiro, com um seguro “até amanhã”!
Naquele dia sentia que algo de diferente estaria para acontecer. Estava ansioso por chegar ao seu bar favorito. Ora se sentava ora se levantava. Quando sentado remexia-se na cadeira, coçava-se como se tivesse apanhado sarna. Fartara-se já da sua jornada. Naquele dia a rotina não lhe caiu bem.
Estava farto de ali de estar, de forma que à hora exacta, 17h30m, fez o seu registo pontométrico, saiu finalmente da empresa e só sossegou quando o seu bourbon lhe foi servido, no seu covil preferido.
Conhecia largamente os que por aquela hora ali costumavam parar. Matutava sobre a vida que cada um levaria, o que os fazia avançar, ir em frente, não desesperar da monotonia que as suas vidas haviam de ser. Nunca chegava a conclusão alguma. Também nunca interpelou ninguém para o questionar sobre o assunto, para o confrontar com a possível sonolência do seu ser, da mesquinhez dos seus objectivos. Todos lhe pareciam gente sem outro rumo que não fosse o de ali estar, porque um dia alguém os pariu e lhes disse: “Estais vivos, agora desenrascai-vos!” Mas seria ele diferente?
Talvez sim, talvez não! Mas pelo menos ele pensava no assunto, caramba. Sim podia viver uma vidinha de trazer por casa, mas tinha consciência disso. Era lúcido, mas solitário, mais por opção do que por constrangimento. A sua vida social resumia-se a uns quantos jantares em casa do exíguo círculo de amigos que mantinha.
Foi afogando a sua ansiedade nos sucessivos goles de “bourbon” que suavemente lhe acariciavam a garganta. Olhou de relance em redor e tudo lhe pareceu igual a tantos outros dias: os mesmos semblantes carregados, o odor a café, a suave brisa que entrava pela porta entreaberta… Nada de novo, pensou! A que propósito tantas ânsias, questionou-se.
Estava já no seu terceiro, quando o sol no declínio, fez exagerar no chão do “Moinho de Café”, o comprimento de umas elegantes pernas femininas, que nas extremidades se faziam acompanhar de uns sapatos pretos de salto alto, por certo italianos.
Peres pousou o copo meio de bourbon e deixou cair ligeiramente o queixo, entreabrindo a boca o suficiente para mostrar a língua curtida pelo álcool.
Há cinco anos que vivia na Capital. Veio do interior, de uma sucursal, para a sede da empresa, com ordens para “colocar na linha aquele pessoal” e durante todo o tempo em que frequenta o “Moinho”, nunca por ali viu pernas iguais àquelas. Caramba, nem estava em si e ainda não tinha visto da mulher sequer metade.

Foto de Joel Peter Witkin

2 thoughts on “O primeiro vislumbre

  1. Mmm… Ja tinha saudades deste tipo de prosa! Gostei!! Vai continuar? Isto promete! Parece-me este um prologo para um conto… Estarei enganada? 🙂
    Beijos.

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