Eu nem devia…

Originally posted 2015-02-04 00:13:18.

arvore_natal.jpgEu nem devia! Porque considero o Natal, tal como o concebe e alardeia o meio excessivamente consumista onde vivo, uma autêntica e desbragada hipocrisia. Por que é só (com todos os significados desta pequena e solitária palavra) nesta época, que todos se lembram, e pouco mais, dos mais necessitados. Porque é nesta altura do ano, que os humanos quase se consciencializam de que são seres sociais e que há até seus pares a quem chamam sem abrigo, de que recordam tropeçar de quando em vez, numa das muitas noitadas bem bebidas, à saída das discotecas e para os quais cozinham agora uma fingida ceia, com direito a bacalhau com todos e tudo resto, que a mesa da classe média (em vias de extinção) é suposto exibir.
Porque é agora que, do alto da sua pelintrice espiritual, muitos percorrem os corredores das catedrais do consumo, em tudo vendo motivo justificado para calcinar o parco 14º mês, se é que por tanto foram abençoados, ou agigantar as suas já gulivescas prestações mensais. Mas pronto, eu entendo, todos temos que ser iguais, para que a galinha da vizinha não seja melhor do que a minha. Só que a igualdade é como um porco, não ronca sempre para o mesmo lado. Ronca, em regra, para onde melhor lhe cheira.
Nesta vertigem da época natalícia, somos todos irmãos, ainda que alguns de pai incógnito. Eu nem tenho qualquer interesse em chamar irmão a certos indivíduos que envergonham a raça humana, mas que, porque é Natal, coitados, “também têm direito”, de modo que passam também à classe de gente.
O Natal é sobretudo uma época, dissimulada, deprimente, potencial causadora de graves desavenças familiares e consumidora de amizades. Por que é dissimulada já sabemos. É deprimente porque constrange os que não têm família próxima, os deserdados da sorte, os que ignoramos, sem razão aparente, obrigados a colocarem-se em frente a um espelho ou, mais certamente, a reflectir a sua imagem numa poça de água das últimas chuvas, e a constatarem o vazio à sua volta, como se essa constatação contrafeita lhes fizesse falta. E isso é o mais próximo de uma espécie de coacção, que os restantes membros da comunidade exercem sobre aqueles, sendo certo que o Natal é, pretensamente, o inverso de tudo que isto representa.
O Cristo em que muitos acreditam como sendo o salvador de toda a humanidade, que acções empreenderia ao entrar com a sua majestade, nesta altura, sei lá… no Colombo ou no Alegro, ou outra qualquer grande superfície comercial? A julgar pelo que fez aos vendilhões do templo, a coisa não ia ser bonita de se ver. Bem, isto de a ASAE não chegasse primeiro.
O que devia, então, unir pode causar a ruptura:
– Onde passamos o Natal este ano?
Esta perguntinha pode muito bem virar irmãos contra irmãos, pais contra filhos e vice-versa, sogros contra compadres e compadres contra genros ou noras. Pode, enfim, traduzir o último Natal em sagrada união familiar.
E as Boas-Festas que não se enviaram?
– Então já não somos amigos?
– Então não!
Vamos lá cimentar essa inequívoca amizade com um postal de natal à antiga, que se envia via CTT e que chega em data desconhecida. Mas para maior firmeza sentimental demonstrar na querença ao outro, há-de acrescer um moderno e-mail e ainda um SMS, que podem muito bem ser enviados no mesmo dia. E, a cereja no topo do bolo, um ainda que curto, telefonema via rede móvel, na noite de consoada: uma mão amiga em qualquer parte, a qualquer hora, no WC ou às 3 da manhã.
Assim se asseverou a firmeza da amizade ou, também, da relação hierárquica que o funcionário mantém com o seu superior. É importante manter as aparências.
No final ou até no meio de tudo isto, onde fica a vida?
Eu nem devia falar do Natal.

3 thoughts on “Eu nem devia…

  1. Natal, é todos os dias, ou seja sempre que o ser humano, assim queira, tens toda a razão, basta ver quanto se gasta só em papel de embrulhos, para que umas horas despois se deite ao lixo, sim esse dinheiro daria para alimentar, muitas crianças e velhimhos, que morrem de fome,
    de qualquer modo passa 365 dias de Natal
    Um abraço nortenho

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