Originally posted 2015-02-04 00:17:47.
Agostinho da Silva, pensador controverso e enigmático.
Centenário do nascimento do pedagogo portuense assinala-se hoje com programa para todo o ano Controvérsia em redor da obra mantém-se, mas é consensual a atitude visionária e anti-institucionalista.
O centenário do nascimento de Agostinho da Silva – celebrado hoje com um programa que se prolonga ao longo de todo o ano revela que a sua figura continua controversa e enigmática, mesmo para os que o conheceram. Nem a designação “filósofo” é consensual.
“Conheci-o e apreciei-o, embora sempre muito intrigado com a sua figura misteriosa, mas foi talvez a pessoa mais extraordinária com que alguma vez me deparei – não era parecido com ninguém excepto com ele próprio”, declarou Eduardo Lourenço, que esteve com Agostinho da Silva em 1958 no Brasil, onde este se exilara. O encontro deu-se no Estado de Santa Catarina, “onde ele era uma espécie de secretário da Cultura”, acrescentou o filósofo e ensaísta, recordando as circunstâncias que conduziram o pedagogo ao exílio voluntário. “A determinada altura da vida intelectual portuguesa, os funcionários públicos tinham de assinar uma declaração em como não eram comunistas e Agostinho da Silva, embora não o fosse, recusou, por considerar um atentado à sua liberdade”.
“A sua linha de pensamento é difícil de enquadrar”, continua Eduardo Lourenço. “Não se pode dizer que tenha sido um conservador, nem um revolucionário ou um anarquista místico, pois ele era um misto de tudo, um ser muito contraditório”.
O professor de Filosofia Nuno Nabais sublinha que “não existe um ‘pensamento Agostinho da Silva’, na medida em que não há uma tese original sua, uma reflexão sobre os grandes temas, como o belo, o bom, o Homem”, mas antes “um estilo desassossegado, contrário à canonização do pensamento” e “uma raiva aos cânones e às instituições”.
“Parasitagem académica”
“Agostinho da Silva sentir-se-ia triste ao ver que existe uma parasitagem em torno do que escreveu e que, no meio académico, há pessoas a fazer doutoramentos sobre reflexões suas que não são filosóficas nem têm densidade teórica para ser objecto de teses, como ele próprio reconhecia” – acrescenta Nuno Nabais.
Mas a reflexão de Agostinho da Silva em torno de diversos temas é encarada de forma diferente pelo escritor Baptista-Bastos, que apresenta as suas obras como “livros de clarificação do pensamento filosófico. Ele escreveu sobre quase tudo o que diz respeito à criatividade e à criação humanas numa linguagem descodificada e singela sem ser simplista e esta é a sua maior grandeza”, destacou.
Para Baptista-Bastos, o filósofo “representa hoje aquilo que sempre representou na revista Seara Nova – uma dose de utopia, quimera e esperança nas infinitas possibilidades do Homem”.
Pensamento visionário
O escritor e jornalista Fernando Dacosta – que descreveu Agostinho da Silva como “possuidor de uma grande lucidez, alguém que não dizia uma frase gratuita” – reforça a ideia de que “foi um ser que veio de um tempo muito à frente e cuja capacidade de antecipar problemas actuais fascinou uns e desconfortou outros”.
“Há 20 anos, disse-me que viríamos a assistir a um fenómeno de globalização, à explosão do desemprego e ao fanatismo religioso”, recordou o escritor, que vê nele “a figura mais brilhante da segunda metade do século XX”.
A veia profética agostiniana não impressiona, todavia, Nuno Nabais, que prefere destacar “o que de mais bonito ele legou, que é uma consciência amarga das asfixias que definem a vida comunitária e cultural portuguesa”.
“Na verdade, Agostinho da Silva construiu um conjunto de mitos sobre Portugal e ele próprio – figura maltratada no país – ao tornar a sua amargura em algo positivo. Confirmou o mito de que os portugueses têm a capacidade de transformar as desgraças em virtudes”. A verdade é que classificar as reflexões de Agostinho da Silva parece ser tão difícil quanto definir a sua personalidade.
* Agência Lusa
Arlindo: Estou espantado de que alguém tenha lido o meu comentário e ainda por cima o tenha apreciado.Foi pena que sem nenhum aviso prévio dos caracteres ainda disponíveis o comentário foi cortado, ficando este truncamento infeliz em que, pelo espanto, esqueci de fechar os parênteses. Fico muito grato a você.
Eduardo, obrigado pela sua brilhante participação!
Pela primeira vez leio um texto sobre Agostinho da Silva que não é meramente laudatório, hagiográfico. A declaração do professor Nuno Nabais é correta. Saliento a “raiva aos cânones e às instituições”. Acredito que fosse mais desprezo do que raiva. Um desprezo talvez injusto, ou ingrato, porque Agostinho soube bem servir-se deles. Acredito que esse desprezo transbordava também para homens. O fato interpretado como bondade, de que quando alguém dizia uma asneira na frente dele ele se limitava a mudar de assunto, pode significar que achava que não valia a pena discutir com, ou elucidar, o interlocutor. Grande escritor (Herta Teresinha Joan e Clara Sombra a das Faias são extraordinárias novelas) e grande orador mas fraco pensador. Curiosamnte todos os relatos de quem conviveu com ele, ou de quem teve uma conversa com ele referem-se à pessoa, seu encanto, suas idiossincrasias; ninguém relata uma idéia sequer, salvas(sic) as sacadas (tiradas) geniais. O escritor Alaor Barbosa, que o visitou em julho de 92 e por ele ficou encantado, só reteve a seguinte informação: “Sabe que fizeram os cálculos e verificaram que o último alemão vai morrer dentro de cem anos?” Como profeta errou mais do que acertou: o esfacelamento da Espanha, o desemprego como o começo do fim do trabalho (resultado da automação), no Brasil a inviabilidade da agricultura tradicional (a ser substituída pela arboricultura). O muito que sabia, ou que dizem que sabia, levou para o túmulo. Não deixou manual, nem notas de aula, nem compêndio; nunca respondeu diretamente a uma pergunta. Nunca revelou o segredinho de como fazia para saber tantas línguas e tantas disciplinas, como oceanografia, anatomia humana, geologia, física quântica. Suspeito que os seus alunos não entendessem patavina da sua elocução: deixavam-se embalar pela facilidade da expressão. Era delirante: vale a pena ler o texto de palestra que fez no Rio de Janeiro em 1962, antes de ir para a Universidade de Brasília, que estava sendo criada: coloca a criação da logo em seguida mal fadada e mal falada Universidade no mesmo nível da epopéia dos Descobrimentos. Espero que apareça alguém que, à moda americana, escreva uma verdadeira biografia de Agostinho da Silva. (A de Artur Manso é baseada nos escritos do próprio biografado.) O biógrafo ideal seria um pesquisador com formação psiquiátrica, Agostinho sendo (sem nenhuma intenção de zombaria) uma instrutiva, bela, fascinante “case-history” de um homem extraordinário que se propôs a ser santo tendo na sua personalidade fortes traços de sintomas de psicopatia (conforme o livro Without Conscience, de Robert D. Hare.