A herança

Originally posted 2018-03-27 16:20:46.

A herança

I_MATERIAL, de Carlos Gote Matoso e No Mundo das Fadas, de Nuno CabritaO Carlos Matoso, vencedor do Concurso do Mês da Fotografia 2014 do Barreiro, tem neste momento em exposição no Auditório Municipal Augusto Cabrita, Barreiro, o seu projeto “I_MATERIAL“: “I_Material é um projeto fotográfico desenvolvido em 2 séries de imagens e pequenos textos, que aborda as relações entre um Eu (sujeito) e a Matéria, explorando o subtil transformativo que as enlaça. Tem-se como ponto de partida a interrogação: “O que será realmente nosso?”. Prevê-se a participação do interlocutor, com imagens e textos, para a ligação das 2 séries.
No final, o nome do projeto deverá ser descodificado para I MATERIAL IMMATERIAL, numa relação triangular dos 3 termos.
No âmbito da exposição e como interlocutor de ligação, o Carlos convidou-me para participar com uma fotografia e com um texto alusivo à mesma e ao significado que certos objetos têm para nós, seres de afetos e memoria.
Vão visitar a exposição que está patente até 17 de maio de 2015. Fica abaixo a fotografia e o texto.

A herança

 

“Muitos, muitos anos antes estava já prometido.
Uma banalidade para muitos, para outros o bem de uma vida.
Uma vida de sol a sol, como se usava e apenas o suficiente para parco sustento. Somente o bastante para resistir. Os magros números das sobras, amealhados a fadiga e perseverança, deixaram um dia que um relógio se transformasse num bem precioso.
O que marcava o debutar da alva e o abater da noite, deixando por entre os dois as quatro refeições do dia. O que se olhava de quando em vez para, com certeza, soltar os homens para o almoço ou para a merenda, por entre as malhadas do pico que adoçava a pedra.
Sempre acorrentado à presilha das calças ou a uma das casas dos botões da camisa suada.
Pela idade adentro foi-lhe marcando as horas, os dias e os anos até se finar.
Num passado longínquo, e porque eu o estimava, foi-me apalavrado como deixa. Eu e outros a ele tínhamos direito por decesso do proprietário. Mas não, isso não estava em causa.
– É para ti!
A mulher, segura, de olho claro e sinais do tempo na face miúda acercou-se de mim, estendeu-me a mão com aquele objeto brilhante:
– Toma, é a herança do teu avô!
Atrás da herança vieram as memórias dos dias solarengos, da cantoria dos homens que assentavam a pedra, das brincadeiras com o cão, das merendas à sombra de uma árvore qualquer e junto a um montão de rama de batatas ceifada havia pouco.
Afinal a herança não foi unicamente aquele objeto, foi muito mais: tanto quanto consigo recordar.”

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