A estante

Originally posted 2015-02-04 00:18:15.

Nick Drake - Pink Moon

Apesar de uma certa imbecilidade do próprio, o facto é que em casa dele ouvi e aprendi muito daquilo que constitui “nowadays” o meu universo musical. Não recordo já se os registos de Nick Drake foram ou não afectados pelo famigerado incêndio em casa do “J” que já aqui mencionei. Sei sim que, desde essa altura, os ambientes sonoros daquele foram sendo regularmente companhia nos mais variados momentos. Também não recordo se no dia da construção da estante no quarto do “J”, parte do projecto de remodelação dos seus anárquicos aposentos, no gira-discos rodava vinil de Drake. Rodavam, isso sim, pedaços de madeira, pregos e parafusos. Recordo ainda a expressão de terror seguida de desfalecimento do “J” quando, por entre a confusão instalada, se lançou ao serrote e cortou mais curto do que devia, um pedaço de madeira com aspirações a prateleira. Testada no local e verificado o irremediável erro, pousou a madeira, levou lentamente as mãos à cabeça caspada e deixou-se ficar ali, de pé, fitando incrédulo a madeira inanimada por longos segundos. Durante esse tempo a face habitualmente rosada e curtida pelo álcool de “J”, tornou-se alva como o lacado da madeira usada na bricolage. Podia ler-se-lhe na expressão: – Meu Deus o que fiz eu?!
E, no silêncio que entretanto se instalou quando todos demos pela asneira, quase podia ouvir-se a voz do próprio Deus responder-lhe na sua calma celestial: – Fizeste merda, como habitualmente!
De facto assim era.
O incidente havia de resolver-se com recurso a mais madeira, desta feita já não cortada pelo “J”, mas por mim ou pelo “F”, não me lembro. “J” ficou incapacitado para o resto da tarde e refugiou-se num copo de uísque meio cheio.
A estante acabou por ser terminada naquele ou noutro dia e revelar-se o espaço ideal para, por detrás das fitas gravadas da TV com programas e filmes convencionais, acolher as cópias das fitas pornográficas disponibilizadas pelo clube de vídeo do bairro. Pode dizer-se com segurança que “J” dispunha na área da pornografia de uma videoteca verdadeiramente impressionante. Os canais da TV Cabo de natureza erótica ou pornográfica, não sei qual a classificação que a instituição lhe atribui, são uma brincadeira de crianças comparada com os títulos de que o “J” dispunha. Nunca mais vi nada que pudesse aproximar-se do seu nível. Aos fãs do porno lamento não puder disponibilizar os contactos de “J”, que aliás não tenho, porque, em verdade vos digo, ficaríeis estarrecidos com a qualidade do material.
Desde a sua conclusão a estante, que ficou famosa pelo seu planeamento aturado e construção exímia, esteve sempre na eminência de sucumbir ao peso das cassetes vídeo, livros e vinil com que o “J” a carregou. Pensaram-se várias formas de atacar a inclinação para a frente que a mesma revelava, qual Torre de Piza nacional, mas sem sucesso. Vivíamos com o coração nas mãos, só de pensar que um dos canais televisivos nacionais ou um dos jornais mais dados ao mórbido, anunciasse um dia pela manhã a morte por soterração de “J”: – Jovem faleceu esta noite em sua própria casa, soterrado sob um amontoado de madeira, discos, livros e cassetes de vídeo, algumas bem pesadas.” Felizmente a coisa nunca chegou a dar-se e pudemos ainda assistir durante mais uns tempos a outras cenas de um surrealismo vincado e personificado na figura carismática do “J”.
Na noite em que a empreitada ficou pronta não houve notícia de que, para lá da face do “J”, a lua estivesse rosada.
O nosso amigo Nick Drake não partilhava dessa opinião:
“I saw it written and I saw it say
Pink moon is on its way
And none of you stand so tall
Pink moon gonna get you all
It’s a pink moon
It’s a pink, pink, pink, pink, pink moon.”

0 thoughts on “A estante

  1. Todos sabiamos que o J vivia sob o signo do peso: o peso do passado e da estante.
    Talvez por isso, quando deles se libertou, não mais “quize” olhar para trás. Ou será que “quize” ???…

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