25 de Abril

Originally posted 2006-04-25 22:24:21.

POVO/MFAAlguém, algures no tempo, me ofereceu um rádio transístor vermelho, da marca National. Estimava-o. Figurava na galeria dos pouquíssimos divertimentos que a infância e pré-adolescência juntas me haviam aportado. Onda média, já se vê, mas ainda assim dava-me a possibilidade de ouvir alguma da música que na altura passava na rádio. Alguma das estações nacionais, outra da Rádio Altitude da Guarda. Não me envergonho do passado e por isso posso dizer sem rebuço que ouvia as canções do “grande” Nelson Ned, Roberto Carlos e outros que tais. Mas também dos Beatles e dos Stones.
Durante o período em que fui proprietário do pequeno transístor, tiveram lugar acontecimentos que marcaram para sempre a minha história e a história deste miserável país.
Frequentava o ciclo preparatório. Destes tempos, para lá dos personagens dos livros de língua francesa, Robert, Nicole e Patapouf, reforçados com a tele escola e aquele professor que insistentemente repisava “repetez vous”, apenas recordo o dia em que uma violenta gripe me atacou e fiquei toda a tarde tremendo ao sol da Primavera, enquanto esperava a “carreira” para casa e o dia em que no intervalo matinal de uma das aulas alguém disse: “Há uma revolução em Lisboa!” Lisboa ficava a umas boas 8 horas de caminho, por isso não havia da revolução chegar ali. Os lisboetas que se desenrascassem. A palavra “revolução” não constava do nosso vocabulário. As pequenas revoluções que a aldeia ia conhecendo resultavam, quando muito, por entre os efeitos do álcool, de umas sacholadas bem assentes no lombo, às vezes na testa, de um vizinho menos ordeiro ou como ponto final de uma rixa de taberna mal resolvida por entre os copos de três. Por isso, nem sabíamos ao certo como interpretar o facto de haver uma revolução em Lisboa. Sabíamos que não era coisa que se desse todos os dias. Portanto, devia ser importante.
E era. Tanto era que à chegada à aldeia, vindo das aulas a 12 km de distância, logo ouvi a D. Luzia dizer, sentada nos degraus de acesso ao seu alpendre de granito, que “Há tanques e tudo na rua e a tropa toda!”
A D. Luzia era uma vizinha que gostava do ar livre. Naquele tempo este género de mulher não usava a cuequinha fio dental que agora as adolescentes com propriedade e algumas senhoras a despropósito exibem fora das calças. Todos sabemos que elas as usam, mas não precisamos de as ver. Cubram-se! Bom, a D. Luzia usava combinação. Peça de vestuário muito prática, apesar de poder pensar-se o contrário. Por mais de que uma vez, descendo a rua de terra batida, o testemunhei. Adepta do ar livre como era, a D. Luzia, quando a necessidade apertava, atravessava a rua em frente à sua casa, abria as pernas e, descontraidamente, ali ficava durante um minuto, mictando de pé, sem sequer levantar a saia, com à vontade suficiente para me inquirir: “Então rapaz, vais p’ra brincadeira?”. Eu ruborizava por entre um encolher de ombros e apressava o passo em direcção à deveza.
Ao ouvir-lhe as palavras sobre a revolução alarguei o passo em direcção a casa. Ainda antes do pão com manteiga, deitei mão ao meu companheiro vermelho, desci a escadas e dirigi-me para junto do poste de iluminação pública mais próximo. Tinha descoberto há algum tempo atrás, que a recepção era substancialmente melhor junto daqueles objectos, que se erguiam na berma da estrada. Liguei-o e ouvi uma música diferente. Música sobre um local que eu não conhecia e mais tarde vim a saber ser uma localidade alentejana. Canções sobre paz, pão, habitação, saúde e educação. Sobre liberdade e poder popular. Conceitos que desconhecia e fui aprendendo nos dias que se seguiram e que fui passando junto daquele poste de iluminação com o companheiro vermelho, que afinal era a cor da “revolução de Lisboa”.
Quando chegaram as primeiras eleições livres, fiquei ingenuamente desiludido: por toda a parte havia cartazes apelando ao voto neste ou naquele partido. A mim parecia-me um atestado de estupidez passado ao povo, que precisaria de alguém que lhe dissesse onde votar, como se não soubesse o que realmente queria. Além do mais dava a impressão que estavam ali a vender sabonetes.
Depois habituei-me à ideia.

0 thoughts on “25 de Abril

  1. No meu caso foi parecido mas como no algarve eram mais progressistas, mandaram o pessoal da escola para casa ao meio dia. Em casa não me lembro de grande coisa a não ser acompanhar na TV os desenvolvimentos. Dias depois a revolução chegou à vila com pichagens nos muros de mata este e mata o outro e por fim o primeiro de maio com toda a gente na rua. Foi uma transição acidentada mas tranquila…

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